segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Dois párocos de Bagunte

Padre João José da Silva, ex-abade de Bagunte

Este bom e simpático velhinho, grande e prestimoso amigo nosso, marchou para junto de Deus, como nós piamente acreditamos, no dia da Festa do Corpo de Deus, às duas horas da madrugada. Parece que havia lá no Céu necessidade da presença de tão bom sacerdote para solenizar o aniversário das bodas do Cordeiro Imaculado.

É deste santo homem que se pode dizer com verdade que passou por este mundo a fazer bem.

Muito inteligente e muito bondoso, pensando mais nos seus parentes e amigos do que na sua pessoa, a todos fazia bem.

Para os amigos, era daquela antiga e tradicional franqueza dos velhos portugueses que não conheciam paredes meias e não tinham ferrolhos nas portas, quando se tratava de receber pessoas de amizade.

Muito crente e muito confiante na Providência de Deus, nada lhe faltou a ale, que ia repartindo sempre do que tinha.

Pastoreou a igreja de Bagunte por quase meio século. Aí foi pároco zeloso e cumpridor dos seus deveres.

Foi ferreiro e pedreiro e estatuário e arboricultor e engenheiro nas horas vagas do seu múnus paroquial.

Como ferreiro, fez por sua mão na forja, todo gradeamento do cemitério.

Como pedreiro, fez a pia do lavatório na sacristia e um fontenário que fica ao lado da igreja.

Como estatuário, fez a imagem, e bem bonita que ela é – de (Santa) Margarida Alacoque, e trabalhou na do Sagrado Coração de Jesus, que existem na sua igreja de Bagunte, ao lado da epístola e em altar, no corpo da igreja.

Como arboricultor, plantou um olival, no largo da igreja. Vimo-lo outro dia quando fomos assistir aos seus funerais.

Há ali muitas dezenas de oliveiras, de seis ou sete anos de vida, carregadas de flor e prometedoras dum belo futuro.

Como engenheiro, reformou todo esse monte árido de oliveiras e fez uma calçada de pedra onde existia um lamaçal que dava caminho para a igreja.

Quando cegou e pediu a sua aposentação, veio viver para esta vila, onde nós o conhecemos melhor e melhor apreciámos os quilates daquela alma de ouro.

Completamente cego como estava, há talvez sete anos, tinha sempre uma conversa agradável e atraente, amenizada de antigas e tão escolhidas anedotas e ditos que mais éramos nós que o procurávamos para passar uns bons momentos de cavaco, do que ele, o pobre ceguinho, que lucrava e se divertia com a nossa companhia.

Nestes termos se foi formando quase um Club de cinco ou seis pés de banco, que assentavam em redor do seu presidente extinto, do pranteado presidente, o nosso querido velhinho, na Alfaiataria do Álvaro, e, ali, passavam duas horas de cavaco ameno.

Eu, o mais incompetente do grupo, encarregado desta triste missão de prantear o que foi nosso presidente, o que melhor tenho feito com lágrimas doo que faço agora com este ligeiro sentir, parece-me bem lembrar-lhes que na próxima quinta-feira, 22 do corrente, hei-de celebrar uma missa por alma do nosso querido presidente, na Misericórdia, pelas seis e meia horas da manhã, a que espero ninguém falte.

A todas as pessoas amigas respeita o mesmo convite, sem cartões nem etiqueta.


L. Amorim in O Poveiro, 24.6.1911



João José da Silva

Abade de Bagunte

Não era padre só, que bem podia

Dizer-se um cumpridor do seu dever;

Era um padre também, que bem sabia

A todos bem amar e bem fazer.


Como pastor, que foi por muitos anos,

De tal modo guardava a sua grei

Que debalde tentava com enganos

Ditar-lhe Satanás a sua lei.


Amigo delicado dos amigos,

Que sofressem qualquer necessidade,

Sem medo de trabalhos ou de p’rigos,

A todos acudia o bom abade.


Para mim, que tive a dita de contá-lo

Entre os amigos meus por principal,

Nunca amigo nenhum, posso jurá-lo,

Encontrei mais sincero e mais leal.


E que sã não era a sua mente!

E que bom que não era o seu conselho!

Que doce que não era, finalmente,

O ver-se a gente sempre a tal espelho!


Espelho tão formoso e tão polido,

De tão soberba traça e qualidade,

Que bem se via logo ser fundido

Nos moldes da virtude e santidade.


Mas tudo tem um fim, e já chegado

Era o dele também. Foi ont’o dia.

E um momento bastou para, alquebrado,

Esse padre cair em agonia.


Té que em pouco morreu!... Mas, hoje, ao vê-lo

Inerte e frio, desbotada a face,

Não houve ninguém, não, que não chorasse

Esse tipo de padre - esse modelo.


António Martins de Faria


Na Paróquia de Bagunte guarda-se uma grande colecção de livros. Muitos deles, vêm certamente do antigo Mosteiro de S. Simão da Junqueira, mas outros não. Alguns terão pertencido ao abade João José da Silva, como é o caso, entre outros, dum Dicionário da Língua Portuguesa, cuja edição foi dedicada a D. Pedro V, rei que por sinal terá alguma vez estado em Bagunte, na Quinta de Vilar....

...


Padre António Gomes da Silva


(O Sanguinhal)

Este nosso querido e velho amigo já não pode mais falar-nos e divertir-nos com as suas piadas sempre prontas, com a sua verve alegre e mordaz, mas sempre urbana e cortês.

As prisões que o ex-administrador de Vila do Conde efectuou e especialmente as dos Srs. Dr. Faria e abades de S. Simão e Bagunte, e ainda as ameaças e perseguições com que os seus inimigos todos os dia os ameaçavam magoaram-no imensa e cruelmente.

Aquele homem alegre e jovial, que tinha para todos um riso de bondade e uma chalaça amiga; que tinha para todos tudo o que fosse seu – a sua fortuna, a sua protecção, a sua influência, os seus amigos, deixou de sorrir e ser alegre. Quando vou os seus amigos encarcerados, sem poder valer talvez à sua inocência ia, caiu numa tristeza profunda e, dia a dia, se via decair aquela alegria, que foi sempre a sua vida, em desalentos e lágrimas, em tristezas e dores.

Fomos assistir ao seu funeral, que se realizou em Bagunte, na sua terra natal, no dia 30 de Dezembro.

Só vimos como ele era adorado pelo povo daquela freguesia e doutras circunvizinhas.

Nunca vimos, na aldeia, acompanhamento tão numeroso, respeito tão sentido.

Calou-nos na alma e fez-nos chorar o tom magoado e triste como cantou uma lição o nosso amigo pároco de parada, a não querer chorar e a chorar…

E quantos e quantos choraram…

Se fosse possível, porém, restituí-lo à vida, ver-se-ia que ele nos diria apenas que cuidássemos dos seus amigos e que proclamássemos a sua inocência e que os restituíssemos às suas famílias e que destruíssemos a trama negra que os persegue.

Era assim a sua alma diamantina.

A ele, ao amigo inolvidável, adeus.

A sua Ex.ma família, as nossas condolências.

O Poveiro, 5/1/1912

...

Padre António Gomes da Silva

De Bagunte

...

Morreu o Padre António – o bom amigo –

O colega leal e dedicado –

Aquele sacerdote – destinado

Dos pobres a servir de doce abrigo!

.

E morreu quando menos se esperava

De quem novo era ainda e vigoroso!

E morreu sem ao menos ter o gozo

De poder abraçar os que prezava!

.

É que, ferido pela morte ímpia

Subitamente, como fere o raio,

Caíra de repente num desmaio

Que em trevas lhe tornou a luz do dia.

.

Um momento depois, sua alma bela,

Do corpo libertada pela morte,

No Céu brilhava já da mesma sorte

Que brilha de manhã a linda estrela.

.

É que Deus, como justo, não podia

Desta forma deixar de premiar

O padre amigo – o padre tutelar –

Da pobreza da sua freguesia.

.

De carpir, entretanto, a sua ausência

Eu não posso deixar, sem vilania,

Enquanto me não vir com ele um dia

No Céu também aos pés da Providência.

.

Até lá, nesse reino, onde hoje moras,

Ao Senhor não te esqueça, ó bom amigo,

De pedir por aquele que contigo

Neste mundo passou alegres horas.

.

E depois, lá no Céu, ambos prostrados

Diante do seu trono de safiras,

Cantaremos, ao som das nossas liras,

Cânticos de louvor, hinos sagrados.

.

António Martins de Faria

...

No conjunto escultórico representado ao cimo, a imagem de Santa Margarida Maria Alacoque é da autoria do P.e João José Silva. Deve ter sido obra realizada em data próxima da da Consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus.

Sem comentários:

Enviar um comentário