A Paróquia de Vila do Conde possui alguns livros interessantes. Vamos falar de um que não apresenta título. Trata-se, parece, de um colecção de fascículos que alguém reuniu e a que pôs uma capa de carneira. Os textos que nele se incluem têm muito de Renascimento.
O primeiro fascículo data de Alcalá de Henares, 1529, e começa com quatro páginas do que era um breve tratado filosófico em impressão arcaizante; faltam-lhe as folhas iniciais. A seguir, vêm: o Livro de Catão (Liber Catonis), 8 páginas; o livro sobre o Desprezo do Mundo (De contemptu Mundi), 23 páginas; o Livro das Fábulas de Esopo, 29 páginas; o Livro de Floreto, 39 páginas; o Livro das Cinco Chaves da Sabedoria (Liber Quinque Clavium Sapientie), 12 páginas.
O segundo fascículo é constituído pela Áurea Exposição dos Hinos, juntamente com o texto, examinada por António de Nebrija, (Aurea hymnorum expositio una cum textu per Antonium Nebrissensem recognita). É uma colecção de 85 hinos litúrgicos profusamente explicados - parafraseados - pelo humanista espanhol Élio António de Nebrija e impressos também em Alcalá de Henares, em 1524, o ano do nascimento de Camões.
As 77 páginas do terceiro fascículo, impresso em 1527 na mesma cidade universitária dos anteriores, são ocupadas pelas Orações inteiramente recolhidas e emendadas com o maior zelo e ainda algumas que por todo o ano se cantam na Santa Igreja (Orationes ad plenum collectae summaque diligentia emendatae insuper et aliquae quae per totum annum in sancta ecclesia cantantur).
O fascículo final é nada mais nada menos que um livrito de Ângelo Policiano, o humanista italiano que se ofereceu a D. João II para cantar os Descobrimentos portugueses bastante antes do Gama ter alcançado a Índia por mar. Tem como título Livro dos dísticos de Miguel Verino Hugolino que se intitula «Das Sentenças» (Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur). O texto começa assim: «Angeli Politiani poetae carmen in obitu Michaelis Verini disertissimi adolescentis», Poema de Ângelo Policiano na morte do jovem eloquentíssimo Miguel Verino. Talvez truncado no fim, ocupa 15 páginas.
Vários hão-de ter sido os possuidores quinhentistas, ora portugueses ora espanhóis, desta antiguidade. Um identificou-se assim: «Este livro he de Manoel de Sá Carneyro Barboza». Um outro chegou a ensaiar uns versos em espanhol no espaço livre duma página:
«... allá en Salamanca
ese lugar estimado
a los ocho días de Junio
todos sean bien concertado»
Talvez um outro escreveu na última página: «Andres Vidal Bolano Vecino de Valladolid que bos ...»
O livro apresenta frequentes anotações manuscritas. O que ele é é incontestavelmente interessante e sobretudo velho, muito velho. Podia até ter sido já lido pelo Fr. João de Vila do Conde ou ainda mais provavelmente pelo P.e Manuel de Sá. Na Biblioteca Municipal há também alguns livros do séc. XVI, creio que um de 1502.
Fique agora o leitor a saber quais são «as cinco chaves da sabedoria»: a primeira é a assiduidade na leitura (Prima sapientie clauis est legendi assiduitas), a segunda é a memorização (Secunda clauis sapientie est memorie commendatio), a terceira é a veneração pelo mestre (Tertia clauis sapientie est honor magistri), a quarta é o desprezo das riquezas (Quarta clauis sapientie est contemptus diuitiarum), por fim, a quinta é a curiosidade constante (Quinta clauis sapientie est frequens interrogatio).
Ouça-se para terminar meia página de conselhos do Livro de Catão – Catão era um romano contemporâneo de Júlio César, do primeiro séc. a.C.:
«Vou-te ensinar agora, filho caríssimo, como deves regrar a tua vida moral. Lê pois os meus preceitos para os entenderes. Ler e não entender é esquecer.
Por isso, ora a Deus. Ama os teus pais. Respeita os parentes. Mantém o que deste. Prepara-te para a vida pública. Anda com os bons. Não vás a conselho sem ser chamado. Sê limpo. Cumprimenta com delicadeza. Respeita o mais velho. Devolve o que te emprestaram. Vê a quem dás. Teme o teu mestre. Conserva a vergonha. Guarda os teus bens. Sê diligente. Cuida da tua família. Não vás a muitas festas. Dorme o suficiente. Ama a tua esposa. Mantém o teu juramento. Não bebas muito. Luta pela pátria. Não acredites no que não tem fundamento. Foge da prostituta. Ensina os teus filhos. Sê manso. Nunca te irrites. Não te rias de ninguém. Testemunha a verdade. Não julgues inconsideradamente. Contém-te nas zangas. Não recuses as obrigações políticas. Cultiva-te. Sê prudente. Faz bem aos bons. Não sejas maldizente. Cultiva a virtude. Diverte-te com contenção. Não jogues aos dados. Dá conselhos sábios. Vence os teus pais pela paciência. Não desprezes o mais novo. Recusa a lei do mais forte. Explica a lei por que te governas. Recorda o benefício recebido. Não te rias do infeliz. Evita julgar. Não cobices o alheio. Aplica-te ao que é honesto».
Para um pagão, é obra!...
Imagens: na primeira, o «Privilégio Imperial» de que se usou no livro era o do genro de D. Manuel I, Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha. Na segunda, rosto do Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur; a terceira imagem, ao fundo, mosta a data de 1524.
O primeiro fascículo data de Alcalá de Henares, 1529, e começa com quatro páginas do que era um breve tratado filosófico em impressão arcaizante; faltam-lhe as folhas iniciais. A seguir, vêm: o Livro de Catão (Liber Catonis), 8 páginas; o livro sobre o Desprezo do Mundo (De contemptu Mundi), 23 páginas; o Livro das Fábulas de Esopo, 29 páginas; o Livro de Floreto, 39 páginas; o Livro das Cinco Chaves da Sabedoria (Liber Quinque Clavium Sapientie), 12 páginas.
O segundo fascículo é constituído pela Áurea Exposição dos Hinos, juntamente com o texto, examinada por António de Nebrija, (Aurea hymnorum expositio una cum textu per Antonium Nebrissensem recognita). É uma colecção de 85 hinos litúrgicos profusamente explicados - parafraseados - pelo humanista espanhol Élio António de Nebrija e impressos também em Alcalá de Henares, em 1524, o ano do nascimento de Camões.
As 77 páginas do terceiro fascículo, impresso em 1527 na mesma cidade universitária dos anteriores, são ocupadas pelas Orações inteiramente recolhidas e emendadas com o maior zelo e ainda algumas que por todo o ano se cantam na Santa Igreja (Orationes ad plenum collectae summaque diligentia emendatae insuper et aliquae quae per totum annum in sancta ecclesia cantantur).
O fascículo final é nada mais nada menos que um livrito de Ângelo Policiano, o humanista italiano que se ofereceu a D. João II para cantar os Descobrimentos portugueses bastante antes do Gama ter alcançado a Índia por mar. Tem como título Livro dos dísticos de Miguel Verino Hugolino que se intitula «Das Sentenças» (Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur). O texto começa assim: «Angeli Politiani poetae carmen in obitu Michaelis Verini disertissimi adolescentis», Poema de Ângelo Policiano na morte do jovem eloquentíssimo Miguel Verino. Talvez truncado no fim, ocupa 15 páginas.
Vários hão-de ter sido os possuidores quinhentistas, ora portugueses ora espanhóis, desta antiguidade. Um identificou-se assim: «Este livro he de Manoel de Sá Carneyro Barboza». Um outro chegou a ensaiar uns versos em espanhol no espaço livre duma página:
«... allá en Salamanca
ese lugar estimado
a los ocho días de Junio
todos sean bien concertado»
Talvez um outro escreveu na última página: «Andres Vidal Bolano Vecino de Valladolid que bos ...»
O livro apresenta frequentes anotações manuscritas. O que ele é é incontestavelmente interessante e sobretudo velho, muito velho. Podia até ter sido já lido pelo Fr. João de Vila do Conde ou ainda mais provavelmente pelo P.e Manuel de Sá. Na Biblioteca Municipal há também alguns livros do séc. XVI, creio que um de 1502.
Fique agora o leitor a saber quais são «as cinco chaves da sabedoria»: a primeira é a assiduidade na leitura (Prima sapientie clauis est legendi assiduitas), a segunda é a memorização (Secunda clauis sapientie est memorie commendatio), a terceira é a veneração pelo mestre (Tertia clauis sapientie est honor magistri), a quarta é o desprezo das riquezas (Quarta clauis sapientie est contemptus diuitiarum), por fim, a quinta é a curiosidade constante (Quinta clauis sapientie est frequens interrogatio).
Ouça-se para terminar meia página de conselhos do Livro de Catão – Catão era um romano contemporâneo de Júlio César, do primeiro séc. a.C.:
«Vou-te ensinar agora, filho caríssimo, como deves regrar a tua vida moral. Lê pois os meus preceitos para os entenderes. Ler e não entender é esquecer.
Por isso, ora a Deus. Ama os teus pais. Respeita os parentes. Mantém o que deste. Prepara-te para a vida pública. Anda com os bons. Não vás a conselho sem ser chamado. Sê limpo. Cumprimenta com delicadeza. Respeita o mais velho. Devolve o que te emprestaram. Vê a quem dás. Teme o teu mestre. Conserva a vergonha. Guarda os teus bens. Sê diligente. Cuida da tua família. Não vás a muitas festas. Dorme o suficiente. Ama a tua esposa. Mantém o teu juramento. Não bebas muito. Luta pela pátria. Não acredites no que não tem fundamento. Foge da prostituta. Ensina os teus filhos. Sê manso. Nunca te irrites. Não te rias de ninguém. Testemunha a verdade. Não julgues inconsideradamente. Contém-te nas zangas. Não recuses as obrigações políticas. Cultiva-te. Sê prudente. Faz bem aos bons. Não sejas maldizente. Cultiva a virtude. Diverte-te com contenção. Não jogues aos dados. Dá conselhos sábios. Vence os teus pais pela paciência. Não desprezes o mais novo. Recusa a lei do mais forte. Explica a lei por que te governas. Recorda o benefício recebido. Não te rias do infeliz. Evita julgar. Não cobices o alheio. Aplica-te ao que é honesto».
Para um pagão, é obra!...
Imagens: na primeira, o «Privilégio Imperial» de que se usou no livro era o do genro de D. Manuel I, Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha. Na segunda, rosto do Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur; a terceira imagem, ao fundo, mosta a data de 1524.
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