segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Algumas figuras, alguns factos

Abertura

O autor desta página tem em linha estudos sobre algumas figuras e alguns factos vila-condenses. É o caso: 
do P.e Manuel de Sá, que foi durante séculos uma referência universal e de quem o Google colocou recentemente em linha dois livros; 
o de Fr. João de Vila do Conde, que dá nome a uma escola e cuja acção contribuiu de modo decisivo para que Portugal possuísse a sua primeira colónia, o Ceilão, hoje Sri Lanka, durante cerca de 60 anos;
a Igreja da Lapa e da Capela de São Bartolomeu que a  precedeu:
o do arquitecto da Matriz, João de Castilho
o dos Condes de Cavaleiros (sobretudo os primeiros destes condes tiveram uma importante acção no Brasil, ainda hoje justamente valorizada pela historiografia daquele país), cujo título se originou na Casa de Cavaleiros, do Outeiro Maior; 
sobre a Confraria do SS Sacramento de Vila do Conde; 
sobre o Conselheiro Abel Andrade.
Tenciona colocar aqui mais alguns trabalhos, como a seu tempo se verá.

Foi publicado na Espanha um livro sobre João de Castilho, o arquitecto da Matriz. Veja-se aqui.

Uma homenagem ao Mons. José Augusto Ferreira

Mons. José Augusto Ferreira (Braga, 2/1/1860-Braga, 21/1/1944) foi pároco de Vila do Conde entre 1893 e 1921. Tornou-se aí um distinto historiador. O seu nome galgou fronteiras, tendo pertencido à Real Academia Galega da Corunha; foi também sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa.
Vários dos seus trabalhos incidem sobre Vila do Conde, em cuja historiografia foi pioneiro, com o celebrado Vila do Conde e o seu Alfoz, 1923, e Os Túmulos do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, 1925; outros abordam temática de interesse para o arciprestado, como A Igreja e o Estado nos Quatro Primeiros Séculos, Santo Agostinho e o Mosteiro da Junqueira, 1913, onde faz uma síntese da história deste mosteiro, ou A Igreja de S. Cristóvão de Rio Mau, 1909.
Mas as suas obras maiores são certamente as que dedicou à Arquidiocese de Braga; entre elas contam-se os Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, em vários volumes, e os Estudos Histórico-Litúrgicos, onde aclara importantes aspectos que a investigação ainda não tinha tratado devidamente.
Também historiou a Diocese do Porto.
A Câmara Municipal de Vila do Conde reconheceu o mérito deste pároco-historiador, homenageando-o em 21 de Março de 1926. Nesse dia, a edilidade ofereceu-lhe um pergaminho com os expressivos dizeres seguintes, da autoria do Dr. António Maria Pereira Júnior:

Ex.mo Senhor:
A Câmara Municipal de Vila do Conde, interpretando os sentimentos de todos os seus munícipes, vem prestar a V. Ex.a a homenagem da sua admiração, do seu respeito e do seu reconhecimento pelo muito que, em manifestações de fecundo carinho, já lhe deve.
Não é sem desvanecimento legítimo que uma terra vê que alguém lhe estuda e compõe a história, arrancando-a à confusão e ao esquecimento das velhas crónicas que a guardam; e quando esse alguém tem as faculdades e a ciência do investigador inteligente e culto que V. Ex.a é, e em tantas obras de notável relevo se assinalaram já, maior é ainda o orgulho de se ver assim estudada e exaltada, nas suas origens e nos seus monumentos, nos seus factos de mais vulto e nos seus homens de melhor nome.
A mais duma assembleia doutíssima, em que de nobres estudos se dá conta e nobres matérias se debatem, tem V. Ex.a. levado o nome da nossa terra no estudo sempre interessante de alguns dos seus monumentos; e já antes, em trabalhos dispersos por várias publicações, V. Ex.a lhe dedicara o labor precioso de preciosas buscas nos esquecidos papéis que se lhe referem.
Os seus dois últimos trabalhos sobre Vila do Conde e o seu Alfoz e Os túmulos de Santa Clara são a plena e brilhante confirmação de preferência que sempre têm merecido ao seu espírito de investigador diligente e de crítico esclarecido as coisas belas que a Arte entre nós criou e que a incúria ou a incompreensão dos homens vai deixando que se mutilem e percam, como se pouco fossem ou mesmo nada valessem. E é porque elas valem ainda como um apelo eloquente para que as defendamos e guardemos da indiferença que as esquece e dos vandalismos que as profanam que maior é o nosso reconhecimento pelo esforço de tão generosa iniciativa, que nenhum interesse solicitou e premiou e que só a nossa gratidão confessa e aplaude.
Injustiça seria esquecer, neste público testemunho dessa gratidão, o pároco devotadíssimo a quem se deve a restauração magnífica da nossa Igreja Matriz, que só o seu amor, o seu cuidado e o seu esforço de verdadeiro artista conseguiram libertar e recompor das mais dolorosas mutilações que a desfiguravam.
Só por si seria essa obra motivo bastante para estas homenagens que nenhum favor de amizade inspira ou diminui, porque só um alto e puro sentimento de justiça as lembrou e valoriza.
Aceite pois V. Ex.a as homenagens que todos os homens desta terra lhe devem pelo muito que, longe embora, a tem sabido exaltar, homenagens que hoje, por intermédio da sua Câmara Municipal, com muita justiça eles lhe vêm trazer, pela sua nobre figura moral significando ainda todo o seu respeito e toda a sua admiração.

Os dizeres do pergaminho vêm quer na revista Ilustração Vilacondense, que do acontecimento fez ilustrada reportagem, quer no jornal Democrático.
A homenagem ao Mons. José Augusto Ferreira teve dois momentos, uma sessão solene na Câmara Municipal e um jantar no Clube 1.º de Dezembro. A Ilustração Vilacondense referiu-se ao acontecimento nestes termos:

Naquele domingo de Março, frio mas claro, a espaços iluminado por um sol tépido, o salão nobre da Câmara Municipal encheu-se de tudo o que Vila do Conde possui de mais distinto e representativo no foro, no professorado, no exército, no clero, nesse povo que abrange todas as classes, hierarquias e castas, e que é sempre distinto quando o adornam sentimentos nobres e o orientam princípios elevados.
A palavra quente, arrebatada e brilhante dos oradores – Dr. Américo José da Silva, Dr. João Canavarro e Pe. José Praça – fez-se ouvir burilada de imagens, enriquecida de altos conceitos, num hino vibrante à sua terra natal e à Pátria comum, que o Mons. José Augusto Ferreira tão desinteressada e alevantadamente servia, com o fulgor vivo da sua inteligência, com o produto admirável do seu esforço.»

O Democrático não foi menos entusiasta. Abriu assim a sua reportagem:

«Decorreu quente, sincera e grandiosa a manifestação de respeito e reconhecimento que o nosso bom povo prestou no passado domingo, 21, à alta e respeitável figura de Mons. José Augusto Ferreira, o arqueólogo insigne e sábio investigador a quem Vila do Conde tanto deve, desde que há mais de 30 anos a veio pastorear e meter ombros a essa obra deveras notável de restaurar a nossa linda Igreja Matriz – esse belo e majestoso monumento que é o encanto e sedução de quantos o vêem e lhe admiram os seus rendilhados elegantes, e se decidiu finalmente com uma paciência de sábio que procura e há de achar, às investigações históricas rigorosas sobre a origem e vida desta terra – a Terra de Faria e da Maia, como rigorosamente a definiu S. Ex.ª no seu belo discurso na Câmara Municipal.
A nossa terra estava em dívida para com o seu Pároco de viver modelar, para com o amigo sincero e dedicado que tem consagrado uma boa parte da sua vida em desvelos e carinhos pelo que só a nós interessa – o património artístico – e a torná-lo conhecido do mundo culto e aos olhos profanos e até aos da terra, muitos dos quais ignoravam que dentro dos seus muros existissem tais preciosidades artísticas que os nossos antepassados nos legaram.»

Do resumo que faz da alocução que o homenageado proferiu na Câmara, paga a pena ler ao menos algumas linhas, de quando o orador está a falar do restauro da Matriz e refere «os desejos (…) de restituir o esplendor à sua (de Vila do Conde) Igreja Matriz, tão maltratada pelos homens desta terra, as contrariedades e dissabores que sofreu por ser mal compreendido, as viagens de estudo que fez para levar a bom termo as obras delineadas, o que conseguiu mercê do auxílio monetário dos Poderes públicos e da dedicação e auxílio de alguns dilectos filhos desta terra, entre os quais os Ex.mos Srs. Drs. Abel Andrade, Figueiredo Faria, Carlos Faria, infelizmente há muito morto, um irmão do Dr. Elias Aguiar e outros».
Fácil é concluir que este monsenhor foi uma figura notabilíssima. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira dedica-lhe um verbete, que é preenchido principalmente pela muito longa lista das suas publicações. Na Enciclopédia Verbo, escreveu sobre ele outro notável historiador bracarense, o professor de Coimbra Avelino de Jesus Costa, que faz uma avaliação global da sua obra.
Não quero finalizar esta evocação da homenagem ao Mons. José Augusto Ferreira sem referir uma elogiosas e merecidas palavras que o Democrático recolhe a respeito do fotógrafo Marques de Abreu, um colaborador precioso do historiador, que estava presente. Quem folheia Vila do Conde e o seu Alfoz ou Os Túmulos de Santa Clara sabe quanto isso é verdade. E essa colaboração não se ficou por aí. O Democrático chama-lhe «ilustre artista e gravador portuense» e afirma que «às obras de investigação histórica editadas por Mons. Ferreira, relativas a Vila do Conde e o seu Alfoz e Os Túmulos de Santa Clara, deu o melhor do seu trabalho, ilustrando esses livros com o que de melhor se pode fazer, ainda nos centros gráficos estrangeiros».

Imagens: em cima, Mons. José Augusto Ferreira; em baixo, fotografia do dia da homenagem aqui referida: à direita do homenageado vê-se o Dr. José Canavaro e à sua esquerda o segundo Conde de Azevedo.

Escritura de Vila do Conde – ano de 953

Kartula de villa comitis. In ripa maris.

In nomine domini.
Ego flamula prolis pelagius et iberia. Vobis gonta abba et fratres et sorores habitantes cenobio vimaranes in domino salutem amen.
Annuit namque serenitatis meae asto animo et propria mea voluntate ut facerem uobis sicut ef facio textum scripture uenditionis et firmitatis. De villas nostras proprias que habemus in ripa maris prope riuulo Aue subtus montis Tirroso. Idest villa de comite quomodo diuidet cum villa fromarici. et cum villa euracini. et inde per aqua maris usque. in suos terminos antiquos ab integro. uobis concedimus cum suas salinas. et cum suas piscarias. et ecclesia que est fundata in castro uocitato sancto iohanne per suos terminos ab integro. uobis illa concedimus cum omni sua prestancia quicquid in se obtinet.
Et concedimus uobis alia villa uocitata quintanella ab integro. per suos terminos quomodo diuidet cum villa fromarici. et villa tauquinia. et perge ad archa de peori et divide cum villa argevadi. et cum villa anserici. et inde per cararia maurisca. et inde ad archa qui sta super ipsa villa. et inde in aula maris et torna ad termino de fromarici ubi prius incoabimus. pomares. ficares. aquas cursiles. uel incursiles. et omnis sua prestancia quicquid in se obtinet ab integro. uobis concedimus cum cunctis prestationibus suis secundum eas obtinuerunt genitores nostri Pelagius e Iberia. sic et nostra criacione uobis damus in ipsas villas et ut eis benefaciatis. Id sunt filios de baltario. et de trasilli. et filios de gresulfo. et de genilli ac de gondulfo.
Ac accepimus de uos duas mulas placibiles. una saia de fanzanzal. cum sua uatanna tiraz. manto azingiaue cum suo panno fazanzale. uno uaso imaginato et exaurato. duas pelles anninias. fiunt sub uno mille solidos. ipsum nobis bene complacuit.
Ita ut de hodie die et in omni tempore sit omnia de iuri nostro abraso ab integro. et ad parte monasterii vimaranes sit traditum atque confirmatum perhenniter deserviendum. Si quis tamen quod fieri non credimus aliquis homo contra hunc factum nostrum ad irrunpendum veniret. que nos in iudicio deuindicare non potuerimus aut uos in uoci nostre quomodo duplemus uobis ipsas villas. et ad parte iudicis terre auri duo talentum. et hoc factum nostrum in cunctis obtineat firmitatis roborem.
Notum VII kalendas aprilis. Era DCCCCLXXXXI. Flamula deo vota in hanc cartulam uenditionis et firmitatis a me facta manu mea rouoro.
Aloitus cellonovensis manu mea confirmo
Amarildus manuldi manu mea confirmo
Iafar sarrazinis manu mea confirmo
Palatinus armentari presbiter confirmo
Arias diaconi manu mea confirmo
Affonso testis. Menno testis.
Zonio testis. Vermudo testis. Zidi guntemeriz testis. Quiriaco testis. Jovino testis. Guntemiro terstis.

Hoduarius aloitiz manu mea confirmo
Aldereto seniorinis manu mea confirmo
Lucidus confratris manu mea confirmo
Pelagiusavianiz manu mea confirmo
Eidinus presbiter manu mea confirmo
Gundesindus zanonit manu mea confirmo
Froila christinit manu mea confirmo
Gundemiro manu mea confirmo
Clerigus astrulfis manu mea confirmo

Flamula

Tradução

Em nome do Senhor, ámen.
Eu, Châmoa, filha de Paio e Ibéria, saúdo-vos a vós, abade Gonta e Irmãos e Irmãs que habitais no Mosteiro de Guimarães. Ámen.
Decidi, na serenidade da minha consciência e de minha própria vontade, fazer-vos, como faço, uma escritura de venda e segurança das nossas vilas que possuímos à beira-mar, junto ao rio Ave, sob o monte de Terroso. Isto é, Vila do Conde, como confronta com a Vila de Formariz e com a Vila de Varzim, e daí pela água do mar, segundo os seus limites antigos, e inteira. Concedemo-vo-la com as suas salinas e com os seus pesqueiros. E a igreja que se encontra no castro chamado S. João, pelos seus termos e inteira, concedemo-vo-la com todos os pertences que possui.
E concedemo-vos outra vila, chamada Quintanela, inteira, pelos seus limites, como confronta com a vila de Formariz e com a vila de Touguinha; e continua até aos marcos de Pior, e confronta com a vila de Argivai e com a vila de Anseriz, e daí pela estrada mourisca; e daí, até ao marco que está acima da mesma vila; e daí, à beira-mar, volta ao limite de Formariz, onde antes começámos. Concedemo-vos os pomares, os figueirais, as águas correntes e paradas e tudo quanto em si possui, inteiramente, como a possuíram os nossos pais Paio e Ibéria e a nossa criação. Damo-vo-lo nessas vilas para que cuideis dele. Estão aí os filhos de Balteiro e de Trasilho, e os filhos de Gresulfo, e de Genilho e de Gondulfo.
E recebemos de vós duas mulas mansas, uma saia de fansansal com sua badana tiraz, um manto de pele de esquilo com o seu pano fansansal, um vaso com imagens e dourado, duas peles de jumento. Totaliza mil soldos. Isso nos satisfaz.
Que de hoje para todo o sempre seja tudo isto retirado da nossa posse e entregue à parte do Mosteiro de Guimarães, e confirmado para seu constante serviço.
Se, todavia, o que cremos que não acontecerá, alguém vier contra este nosso contrato, para o desfazer, não poderemos justificá-lo em juízo, ou nós contra vós, dobraremos essas vilas e mais dois talentos de ouro para o juiz da terra. E que em tudo este nosso acto obtenha garantia de segurança.
26 de Março de 953.
Eu, Châmoa Deovota, confirmo com a minha mão nesta escritura de venda e segurança feita por mim.

Hodoário Aloites, confirmo com minha mão.
Aldereto Senhorins, confirmo com minha mão.
Irmão Lúcido, confirmo com minha mão.
Paio Arianes, confirmo com minha mão.
Padre Eidino, confirmo com minha mão.
Gundesindo Sanões, confirmo com minha mão.
Froila Cristins, confirmo com minha mão.
Gundemiro, confirmo com minha mão.

Aloito Celonovense, confirmo com minha mão.
Amareldo Manuldes, confirmo com minha mão.
Jafar Sarracins, confirmo com minha mão.
Palatino Armentares, confirmo com minha mão.
Árias Diácones, confirmo com minha mão.
Afonso, testemunha. Meno, testemunha.
Sónio, testemunha. Vermudes, testemunha. Cides Guntemires, testemunha. Quiríaco, testemunha. Jovino, testemunha. Guntemiro, testemunha.

Châmoa

D. Manuel Baptista da Cunha

O Arcebispo que viveu cinco meses de exílio em Vila do Conde

Nos Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, conta o Mons. José Augusto Ferreira o período que o arcebispo bracarense D. Manuel Baptista da Cunha passou em Vila do Conde, em exílio – exílio que terminou com a sua morte.
Estávamos em finais de 1911 e pesavam sobre a Igreja as prepotências republicanas, como o próprio historiador nos vai explicar. Como reflexo da mesma situação política, é diminuta a importância que a imprensa vila-condense deu aos acontecimentos, atendendo a que a Matriz da Vila foi, para alguns efeitos, a ocasional «catedral» da Diocese. Como amostra, vejam-se alguns dos parágrafos do Democrático, que noticiam a morte do Arcebispo e que saíram quase ao fundo da segunda página, sem destaque nenhum:

«No belo palacete do Sr. Comendador Bento de Aguiar, à Rua Bento de Freitas, faleceu às 10 horas do dia 13 do corrente, vitimado por uma congestão cerebral, o arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, D. Manuel Baptista da Cunha.
Era natural da freguesia de Espinhel, concelho de Águeda, e contava 70 anos de idade.
O seu cadáver, encerrado em caixão de chumbo, foi depositado na Igreja Matriz ao fim da tarde de quarta-feira, celebrando-se ofícios e matinas na quinta, com assistência de muitos eclesiásticos das dioceses do Porto e de Braga e da maioria dos prelados do país.
Sexta-feira, depois de solenes exéquias, efectuou-se o enterramento e a inumação em jazigo que a família Beiral possui no Cemitério da Ordem Terceira de S. Francisco.
No próximo número daremos uma notícia mais circunstanciada dos funerais.»

Efectivamente, na semana seguinte, o mesmo jornal volta ao tema, para informar, entre outras coisas, que «a oração fúnebre foi proferida pelo bispo do Porto, D. António Barroso, que fez um discurso correctíssimo», que as absolvições «foram lançadas pelos Bispos de Viseu, Lamego e Portalegre e pelo arcebispo do Algarve», sob a presidência do «Arcebispo-bispo da Guarda», e que «dirigiu os funerais o cónego Prior desta Vila, Mons. José Augusto Ferreira».
Passemos agora a palavra este Prior da Vila, nos seus Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga:

Desterro do Arcebispo e seu estágio em Vila do Conde

«O Governo e os seus agentes teimaram na formação e instalação das Cultuais, nos termos da Lei da Separação, organismos condenados pela Igreja, por serem opostos à Constituição da mesma Igreja e à sua hierarquia; por isso os Bispos vieram unanimemente à estacada e proibiram tais Associações[1] encarregadas do culto.
Os Bispos portugueses foram todos castigados com processos dispendiosos para eles e com a expulsão vio­lenta da sede das Dioceses e seu distrito; todavia as Cultuais não se formaram e, não obstante, o culto católico manteve-se em todas as igrejas do país.
O Arcebispo D. Manuel Baptista da Cunha expediu com data de 5 de Janeiro de 1912 uma Circular que fez distribuir pelos Vigários Gerais e Arciprestes a todos os Párocos deste Arcebispado, proibindo a formação das Cultuais, no sentido do citado Decreto de 20 de Abril do mesmo ano.
O Governo respondeu à citada Circular com o De­creto de 12 de Fevereiro seguinte, condenando-o à pena de desterro para fora do Distrito de Braga por dois anos, além da perda dos benefícios materiais do Estado a que por ventura tivesse direito. Foi-lhe conce­dido o prazo de cinco dias a contar da publicação deste Decreto no Diário do Governo, para sair da cidade, que se chamou dos Arcebispos, e seu distrito (vide Diário do Governo, n.º 36, de 13 de Fevereiro de 1912).
No dia 17 de Fevereiro o Arcebispo retirou para a sua casa de Paralela (Águeda), em obediência ao De­creto do Governo, que lhe impôs a saída do Distrito de Braga durante dois anos, por haver cumprido o seu dever, comunicando, como disse, ao Clero e fiéis da Arquidiocese a doutrina da Igreja Católica sobre as Associações Cultuais!
Na Gare teve o Arcebispo uma despedida afectuosa por parte do Clero e amigos pessoais, havendo na véspera recebido na sua modesta casa do Campo Novo uma eloquente mensagem de saudação assinada pelo Cabido e por todo o Clero da cidade e concelho.
Pouco depois escreveu-me uma carta dizendo ser sua vontade benzer os Óleos na Igreja matriz de Vila do Conde em Quinta-feira maior, e hospedar-se na minha casa com o Sacerdote que devia acompanhá-lo.
Prontamente respondi, pondo a minha pobre casa com todo o gosto à disposição do bondoso Prelado.
O Arcebispo, porém, reconsiderou; fez a bênção dos Óleos na Igreja da sua terra e, quando entendeu, tratou da sua instalação definitiva em Vila do Conde, servindo eu de intermediário para tudo. Isto, porém, tem uma história, que vou contar em meia dúzia de linhas, pela necessidade de abreviar o assunto, a fim de não tornar demasiadamente longas estas «Memórias».
Aí pelo mês de Dezembro de 1911, morava já o Arcebispo no Campo Novo, vim a esta cidade e fui vi­sitá-lo.
Eu, que sou de Braga e toda a minha vida vi o Ar­cebispo rodeado de grandeza num Palácio, fiquei mal impressionado com a nova morada do meu Prelado; porém, depois que conversei com ele durante alguns minutos e ouvi os seus desabafos, comovi-me e disse-lhe que me parecia não estar ele bem ali e, por isso, ofereci-lhe sinceramente a minha casa em Vila do Con­de, oferta que ele aceitou logo em princípio.
Com este meu gesto tive um duplo intuito: prestar um serviço à Igreja numa conjuntura difícil da sua história e concorrer de algum modo para o engrandeci­mento de Vila do Conde, terra de tradições aristocráticas.
O Arcebispo mandou a Vila do Conde pessoa da sua confiança para arrendar uma casa; mas as coisas dispuseram-se de modo que coincidiram com a compra do palacete da Avenida por um benemérito e bizarro vilacondense, residente em Pernambuco (comendador Bento Luís de Aguiar, irmão do Rev. Dr. Elias Luís de Aguiar, e já falecido), que genero­samente o cedeu ao Arcebispo durante a sua permanência naquela vila.
Conseguida a casa, foi preciso preparar o ambiente, a fim de garantir a tranquilidade do Arcebispo.
Na altura devida, sem ruidosos espectáculos, por não os permitirem os tempos, entrou D. Manuel Ba­ptista da Cunha em Vila do Conde no dia 19 de Dezem­bro, proximidades do Natal de 1912, indo logo no dia 21 à Igreja Matriz conferir uma Ordenação geral, acto, que, por constituir uma novidade na terra, foi numerosamente concorrido de fiéis.
O Arcebispo durante os cinco meses da sua permanência na vila foi sempre respeitado e estimado por todos; conferiu uma outra Ordenação, administrou o Crisma por diferentes vezes a milhares de fiéis, ben­zeu os Óleos em Quinta-feira Maior, e celebrou com muito esplendor Missa pontifical no Domingo de Páscoa.
E, quando eu preparava e dispunha as coisas para duas grandes solenidades — Primeira Comunhão das crianças e Tríduo e Festa do Sagrado Coração de Jesus, que deviam ser presididas pelo bondoso Arcebispo (estas duas festas, já de costume na terra, fizeram-se de­pois com a presidência do saudoso Bispo do Porto D. António Barroso), a fatalidade do destino adverso veio mudar o cenário dos acontecimentos!

Morte do Arcebispo em Vila do Conde

O Arce­bispo havia resolvido aceitar o convite, que lhe fora feito para ir presidir às pomposas festas do Espírito Santo em Paredes de Coura, onde ministraria o Crisma.
Na antevéspera da partida mandou-me chamar. Falou-me no compromisso tomado e na repugnância em satisfazê-lo por motivo de saúde. O seu espírito estava conturbado.
Aconselhei-o a que, por motivo justificado, adiasse a visita e nesse sentido telegrafasse para os amigos de Paredes de Coura. Adiar também é resolver, disse eu ao Arcebispo, e retirei-me; porém longe de mim o pensamento da des­graça que estava iminente.
No outro dia ou no imediato, de manhã cedo, cai-me em casa a infausta notícia da doença súbita, de que fora acometido o Arcebispo.
Corri imediatamente a casa dele e soube que, preparando-se para a jornada de Paredes de Coura, fora acometido duma congestão cerebral, que num artério-escleroso poucas probabilidades de melhoras oferecia.
Dado o alarme, compareceram logo médicos e farmacêuticos, e todos com grande dedicação procuraram salvar o doente.
Considerado o caso perdido, administrei-lhe o Sa­cramento da Extrema-Unção e li-lhe o Ofício da agonia.
No dia 13 de Maio, com setenta anos de idade, o Prelado exalava o último suspiro e sucumbia talvez ao peso ingente dos desgostos e amarguras, que tinha curtido nos últimos anos do seu pontificado.
A morte redentora veio pôr termo a tanto sofrimento e aliviá-lo dum encargo, com que certamente já não podia.
Toda a vila ficou consternada com o triste e dolo­roso acontecimento.
Resolvido que ficasse provisoriamente em Vila do Conde o cadáver do Arcebispo, prepararam-se os funerais, que tiveram uma extraordinária imponência.
Na tarde do dia 15 de Maio o cadáver do Arcebispo foi transportado, com grande concurso de Clero e fiéis, para a Igreja matriz, onde se cantaram Vésperas e Mati­nas, e no dia imediato Laudes e Missa, sendo no fim dadas as Absolvições ao túmulo pelos Bispos do Al­garve, Viseu, Lamego e Portalegre, e a última pelo Arce­bispo-Bispo da Guarda.
O Bispo do Porto D. António Barroso proferiu uma sentida Oração fúnebre.
Além dos Prelados presentes, outros se fizeram representar, e, entre estes, o egrégio Arcebispo D. Augusto Eduardo Nunes pela minha obscura pessoa. Seguiu-se finalmente o acompanhamento ao Cemitério, presidido pelo Deão da Sé Primaz Correia Simões, incorporando-se no cortejo fúnebre os Bispos já referidos, os Cónegos da Catedral de Braga, numerosíssimo Clero do Arcebispado e do Bispado do Porto, as Irmandades e Confrarias da Vila, grande concurso de fiéis, etc.
Os restos mortais do saudoso Prelado ficaram provisoriamente depositados ali no jazigo que pertencera à distinta família Beiral Rocha, e já então era e ainda hoje é propriedade minha, sendo depois transferidos para o humilde Cemitério da terra da sua naturalidade, onde repousam com este singelo epitáfio:

AQUI JAZ
O ARCEBISPO DE BRAGA
D. MANUEL BAPTISTA DA CUNHA.
NASCEU EM PARADELLA A 16 DE ABRIL DE 1843.
FALLECEU EM VILA DO CONDE A 13 DE MAIO DE 1913.

Esta inscrição, na sua eloquente simplicidade, mostra-nos que D. Manuel Baptista da Cunha morreu no exílio e, portanto, ficou sendo perante a história uma das vítimas ilustres da perseguição religiosa.»

[1] Estas Associações Cultuais teriam a seu cargo todos os bens das igrejas, e os párocos nem a elas poderiam pertencer...

Imagens: em cima, D. Manuel Baptista da Cunha; mais a baixo, o palacete onde o mesmo Arcebispo redidiu e faleceu em Vila do Conde.

A Fénix na Matriz na Matriz de Vila do Conde

Desde há muito que me intrigava certa decoração dumas colunas de talha nacional que existem nas capelas do transepto da Matriz e que não é diferente da de muitas outras de variadas paragens.
O caso é este: pelas colunas acima trepam ramos de videira com fartos cachos – pâmpanos – e no meio daquela vegetação luxuriante vêem-se um menino e uma ave. Um e outro debicam as uvas. Mas eu não fazia ideia do que aquilo ali significava.
Há dias, de visita ao antigo Mosteiro de Tibães, lá vi de novo esta decoração. Perguntei à guia, mas ela não me deu explicação satisfatória. Então fui mais uma vez à internet tentar descobrir o significado daquilo e consegui o que queria.
A ramagem de videira e as uvas representam a vinha do Senhor, que produz o vinho que dá a vida eterna. A ave é a Fénix da mitologia, que renasce das cinzas e que significa a ressurreição.
Cruzam-se ali dois textos bíblicos, o da vinha do Senhor e o do Evangelho de S. João, quando Jesus diz que “quem comer deste pão e beber deste vinho viverá para sempre”.
Na mesma igreja, num festão de pedra, há esculpido o motivo da vinha e da Fénix.
Festão do séc. XVI com os motivos da vinha e da Fénix (a ave está na terceira "pedra" a contar de baixo - clique sobre a imagem para a ver melhor).
Neste fragmento de coluna do coro alto do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde, actualmente pousado no chão, vêem-se bem as videiras, as uvas e o menino; a Fénix está à direita, quase ao fundo.
Ao todo, na Matriz, deve haver lá para uma dezena de representações da Fénix - que é sempre renascida.

LIVRO ANTIGO

A Paróquia de Vila do Conde possui alguns livros interessantes. Vamos falar de um que não apresenta título. Trata-se, parece, de um colecção de fascículos que alguém reuniu e a que pôs uma capa de carneira. Os textos que nele se incluem têm muito de Renascimento.
O primeiro fascículo data de Alcalá de Henares, 1529, e começa com quatro páginas do que era um breve tratado filosófico em impressão arcaizante; faltam-lhe as folhas iniciais. A seguir, vêm: o Livro de Catão (Liber Catonis), 8 páginas; o livro sobre o Desprezo do Mundo (De contemptu Mundi), 23 páginas; o Livro das Fábulas de Esopo, 29 páginas; o Livro de Floreto, 39 páginas; o Livro das Cinco Chaves da Sabedoria (Liber Quinque Clavium Sapientie), 12 páginas.
O segundo fascículo é constituído pela Áurea Exposição dos Hinos, juntamente com o texto, examinada por António de Nebrija, (Aurea hymnorum expositio una cum textu per Antonium Nebrissensem recognita). É uma colecção de 85 hinos litúrgicos profusamente explicados - parafraseados - pelo humanista espanhol Élio António de Nebrija e impressos também em Alcalá de Henares, em 1524, o ano do nascimento de Camões.
As 77 páginas do terceiro fascículo, impresso em 1527 na mesma cidade universitária dos anteriores, são ocupadas pelas Orações inteiramente recolhidas e emendadas com o maior zelo e ainda algumas que por todo o ano se cantam na Santa Igreja (Orationes ad plenum collectae summaque diligentia emendatae insuper et aliquae quae per totum annum in sancta ecclesia cantantur).
O fascículo final é nada mais nada menos que um livrito de Ângelo Policiano, o humanista italiano que se ofereceu a D. João II para cantar os Descobrimentos portugueses bastante antes do Gama ter alcançado a Índia por mar. Tem como título Livro dos dísticos de Miguel Verino Hugolino que se intitula «Das Sentenças» (Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur). O texto começa assim: «Angeli Politiani poetae carmen in obitu Michaelis Verini disertissimi adolescentis», Poema de Ângelo Policiano na morte do jovem eloquentíssimo Miguel Verino. Talvez truncado no fim, ocupa 15 páginas.
Vários hão-de ter sido os possuidores quinhentistas, ora portugueses ora espanhóis, desta antiguidade. Um identificou-se assim: «Este livro he de Manoel de Sá Carneyro Barboza». Um outro chegou a ensaiar uns versos em espanhol no espaço livre duma página:
«... allá en Salamanca
ese lugar estimado
a los ocho días de Junio
todos sean bien concertado»
Talvez um outro escreveu na última página: «Andres Vidal Bolano Vecino de Valladolid que bos ...»
O livro apresenta frequentes anotações manuscritas. O que ele é é incontestavelmente interessante e sobretudo velho, muito velho. Podia até ter sido já lido pelo Fr. João de Vila do Conde ou ainda mais provavelmente pelo P.e Manuel de Sá. Na Biblioteca Municipal há também alguns livros do séc. XVI, creio que um de 1502.
Fique agora o leitor a saber quais são «as cinco chaves da sabedoria»: a primeira é a assiduidade na leitura (Prima sapientie clauis est legendi assiduitas), a segunda é a memorização (Secunda clauis sapientie est memorie commendatio), a terceira é a veneração pelo mestre (Tertia clauis sapientie est honor magistri), a quarta é o desprezo das riquezas (Quarta clauis sapientie est contemptus diuitiarum), por fim, a quinta é a curiosidade constante (Quinta clauis sapientie est frequens interrogatio).
Ouça-se para terminar meia página de conselhos do Livro de Catão – Catão era um romano contemporâneo de Júlio César, do primeiro séc. a.C.:
«Vou-te ensinar agora, filho caríssimo, como deves regrar a tua vida moral. Lê pois os meus preceitos para os entenderes. Ler e não entender é esquecer.
Por isso, ora a Deus. Ama os teus pais. Respeita os parentes. Mantém o que deste. Prepara-te para a vida pública. Anda com os bons. Não vás a conselho sem ser chamado. Sê limpo. Cumprimenta com delicadeza. Respeita o mais velho. Devolve o que te emprestaram. Vê a quem dás. Teme o teu mestre. Conserva a vergonha. Guarda os teus bens. Sê diligente. Cuida da tua família. Não vás a muitas festas. Dorme o suficiente. Ama a tua esposa. Mantém o teu juramento. Não bebas muito. Luta pela pátria. Não acredites no que não tem fundamento. Foge da prostituta. Ensina os teus filhos. Sê manso. Nunca te irrites. Não te rias de ninguém. Testemunha a verdade. Não julgues inconsideradamente. Contém-te nas zangas. Não recuses as obrigações políticas. Cultiva-te. Sê prudente. Faz bem aos bons. Não sejas maldizente. Cultiva a virtude. Diverte-te com contenção. Não jogues aos dados. Dá conselhos sábios. Vence os teus pais pela paciência. Não desprezes o mais novo. Recusa a lei do mais forte. Explica a lei por que te governas. Recorda o benefício recebido. Não te rias do infeliz. Evita julgar. Não cobices o alheio. Aplica-te ao que é honesto».
Para um pagão, é obra!...

Imagens: na primeira, o «Privilégio Imperial» de que se usou no livro era o do genro de D. Manuel I, Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha. Na segunda, rosto do Liber distichorum Michaelis Verini Vgolini qui sententiarum inscribitur; a terceira imagem, ao fundo, mosta a data de 1524.

Dois párocos de Bagunte

Padre João José da Silva, ex-abade de Bagunte

Este bom e simpático velhinho, grande e prestimoso amigo nosso, marchou para junto de Deus, como nós piamente acreditamos, no dia da Festa do Corpo de Deus, às duas horas da madrugada. Parece que havia lá no Céu necessidade da presença de tão bom sacerdote para solenizar o aniversário das bodas do Cordeiro Imaculado.

É deste santo homem que se pode dizer com verdade que passou por este mundo a fazer bem.

Muito inteligente e muito bondoso, pensando mais nos seus parentes e amigos do que na sua pessoa, a todos fazia bem.

Para os amigos, era daquela antiga e tradicional franqueza dos velhos portugueses que não conheciam paredes meias e não tinham ferrolhos nas portas, quando se tratava de receber pessoas de amizade.

Muito crente e muito confiante na Providência de Deus, nada lhe faltou a ale, que ia repartindo sempre do que tinha.

Pastoreou a igreja de Bagunte por quase meio século. Aí foi pároco zeloso e cumpridor dos seus deveres.

Foi ferreiro e pedreiro e estatuário e arboricultor e engenheiro nas horas vagas do seu múnus paroquial.

Como ferreiro, fez por sua mão na forja, todo gradeamento do cemitério.

Como pedreiro, fez a pia do lavatório na sacristia e um fontenário que fica ao lado da igreja.

Como estatuário, fez a imagem, e bem bonita que ela é – de (Santa) Margarida Alacoque, e trabalhou na do Sagrado Coração de Jesus, que existem na sua igreja de Bagunte, ao lado da epístola e em altar, no corpo da igreja.

Como arboricultor, plantou um olival, no largo da igreja. Vimo-lo outro dia quando fomos assistir aos seus funerais.

Há ali muitas dezenas de oliveiras, de seis ou sete anos de vida, carregadas de flor e prometedoras dum belo futuro.

Como engenheiro, reformou todo esse monte árido de oliveiras e fez uma calçada de pedra onde existia um lamaçal que dava caminho para a igreja.

Quando cegou e pediu a sua aposentação, veio viver para esta vila, onde nós o conhecemos melhor e melhor apreciámos os quilates daquela alma de ouro.

Completamente cego como estava, há talvez sete anos, tinha sempre uma conversa agradável e atraente, amenizada de antigas e tão escolhidas anedotas e ditos que mais éramos nós que o procurávamos para passar uns bons momentos de cavaco, do que ele, o pobre ceguinho, que lucrava e se divertia com a nossa companhia.

Nestes termos se foi formando quase um Club de cinco ou seis pés de banco, que assentavam em redor do seu presidente extinto, do pranteado presidente, o nosso querido velhinho, na Alfaiataria do Álvaro, e, ali, passavam duas horas de cavaco ameno.

Eu, o mais incompetente do grupo, encarregado desta triste missão de prantear o que foi nosso presidente, o que melhor tenho feito com lágrimas doo que faço agora com este ligeiro sentir, parece-me bem lembrar-lhes que na próxima quinta-feira, 22 do corrente, hei-de celebrar uma missa por alma do nosso querido presidente, na Misericórdia, pelas seis e meia horas da manhã, a que espero ninguém falte.

A todas as pessoas amigas respeita o mesmo convite, sem cartões nem etiqueta.


L. Amorim in O Poveiro, 24.6.1911



João José da Silva

Abade de Bagunte

Não era padre só, que bem podia

Dizer-se um cumpridor do seu dever;

Era um padre também, que bem sabia

A todos bem amar e bem fazer.


Como pastor, que foi por muitos anos,

De tal modo guardava a sua grei

Que debalde tentava com enganos

Ditar-lhe Satanás a sua lei.


Amigo delicado dos amigos,

Que sofressem qualquer necessidade,

Sem medo de trabalhos ou de p’rigos,

A todos acudia o bom abade.


Para mim, que tive a dita de contá-lo

Entre os amigos meus por principal,

Nunca amigo nenhum, posso jurá-lo,

Encontrei mais sincero e mais leal.


E que sã não era a sua mente!

E que bom que não era o seu conselho!

Que doce que não era, finalmente,

O ver-se a gente sempre a tal espelho!


Espelho tão formoso e tão polido,

De tão soberba traça e qualidade,

Que bem se via logo ser fundido

Nos moldes da virtude e santidade.


Mas tudo tem um fim, e já chegado

Era o dele também. Foi ont’o dia.

E um momento bastou para, alquebrado,

Esse padre cair em agonia.


Té que em pouco morreu!... Mas, hoje, ao vê-lo

Inerte e frio, desbotada a face,

Não houve ninguém, não, que não chorasse

Esse tipo de padre - esse modelo.


António Martins de Faria


Na Paróquia de Bagunte guarda-se uma grande colecção de livros. Muitos deles, vêm certamente do antigo Mosteiro de S. Simão da Junqueira, mas outros não. Alguns terão pertencido ao abade João José da Silva, como é o caso, entre outros, dum Dicionário da Língua Portuguesa, cuja edição foi dedicada a D. Pedro V, rei que por sinal terá alguma vez estado em Bagunte, na Quinta de Vilar....

...


Padre António Gomes da Silva


(O Sanguinhal)

Este nosso querido e velho amigo já não pode mais falar-nos e divertir-nos com as suas piadas sempre prontas, com a sua verve alegre e mordaz, mas sempre urbana e cortês.

As prisões que o ex-administrador de Vila do Conde efectuou e especialmente as dos Srs. Dr. Faria e abades de S. Simão e Bagunte, e ainda as ameaças e perseguições com que os seus inimigos todos os dia os ameaçavam magoaram-no imensa e cruelmente.

Aquele homem alegre e jovial, que tinha para todos um riso de bondade e uma chalaça amiga; que tinha para todos tudo o que fosse seu – a sua fortuna, a sua protecção, a sua influência, os seus amigos, deixou de sorrir e ser alegre. Quando vou os seus amigos encarcerados, sem poder valer talvez à sua inocência ia, caiu numa tristeza profunda e, dia a dia, se via decair aquela alegria, que foi sempre a sua vida, em desalentos e lágrimas, em tristezas e dores.

Fomos assistir ao seu funeral, que se realizou em Bagunte, na sua terra natal, no dia 30 de Dezembro.

Só vimos como ele era adorado pelo povo daquela freguesia e doutras circunvizinhas.

Nunca vimos, na aldeia, acompanhamento tão numeroso, respeito tão sentido.

Calou-nos na alma e fez-nos chorar o tom magoado e triste como cantou uma lição o nosso amigo pároco de parada, a não querer chorar e a chorar…

E quantos e quantos choraram…

Se fosse possível, porém, restituí-lo à vida, ver-se-ia que ele nos diria apenas que cuidássemos dos seus amigos e que proclamássemos a sua inocência e que os restituíssemos às suas famílias e que destruíssemos a trama negra que os persegue.

Era assim a sua alma diamantina.

A ele, ao amigo inolvidável, adeus.

A sua Ex.ma família, as nossas condolências.

O Poveiro, 5/1/1912

...

Padre António Gomes da Silva

De Bagunte

...

Morreu o Padre António – o bom amigo –

O colega leal e dedicado –

Aquele sacerdote – destinado

Dos pobres a servir de doce abrigo!

.

E morreu quando menos se esperava

De quem novo era ainda e vigoroso!

E morreu sem ao menos ter o gozo

De poder abraçar os que prezava!

.

É que, ferido pela morte ímpia

Subitamente, como fere o raio,

Caíra de repente num desmaio

Que em trevas lhe tornou a luz do dia.

.

Um momento depois, sua alma bela,

Do corpo libertada pela morte,

No Céu brilhava já da mesma sorte

Que brilha de manhã a linda estrela.

.

É que Deus, como justo, não podia

Desta forma deixar de premiar

O padre amigo – o padre tutelar –

Da pobreza da sua freguesia.

.

De carpir, entretanto, a sua ausência

Eu não posso deixar, sem vilania,

Enquanto me não vir com ele um dia

No Céu também aos pés da Providência.

.

Até lá, nesse reino, onde hoje moras,

Ao Senhor não te esqueça, ó bom amigo,

De pedir por aquele que contigo

Neste mundo passou alegres horas.

.

E depois, lá no Céu, ambos prostrados

Diante do seu trono de safiras,

Cantaremos, ao som das nossas liras,

Cânticos de louvor, hinos sagrados.

.

António Martins de Faria

...

No conjunto escultórico representado ao cimo, a imagem de Santa Margarida Maria Alacoque é da autoria do P.e João José Silva. Deve ter sido obra realizada em data próxima da da Consagração do mundo ao Sagrado Coração de Jesus.

Dr. Alexandrino Fernandes dos Santos

- Professor no Seminário Conciliar e Director da revista "Acção Católica"

Alguém escreveu que a simplicidade é a igno­rância do próprio méri­to. Todavia, as almas grandes, conforme ensi­na Santa Teresa, reconhe­cendo em si, méritos, fazem deles entrega a Deus.
É assim que eu vejo o Dr. Alexandrino Fernan­des dos Santos: tudo re­ferindo a Deus, já que reconhecia que "tudo" quanto tinha do Senhor o havia recebido.
«A humildade é o al­tar sobre o qual Deus quer que Lhe ofereçamos sacrifícios»... e o Doutor Alexandrino "celebrou" neste altar.
Tenho a firme convic­ção que todos os antigos alunos do prestigiado mestre, que nasceu em Santagões, antiga fregue­sia e hoje lugar da fre­guesia de Bagunte, con­celho de Vila do Conde, em 3 de Abril de 1908, dele têm esta viva ima­gem: a simplicidade e humildade em pessoa.
Terminado o Curso Filosófico e após o primeiro ano de Teologia, concluído com distinção, foi escolhido para com­pletar na Universidade Gregoriano, em Roma, o Curso teológico, matri­culando-se em 1928.
Em 26 de Março de 1932 recebeu em Roma a ordenação sacerdotal e, concluído o doutora­mento em Teologia, ini­ciou o magistério no Se­minário Conciliar de Braga, em Outubro de 1932, sendo um grande obreiro da formação in­telectual dos seminaris­tas pelo espaço de qua­renta anos.
Foi um distinto professor, admirado e estima­do por todos os alunos embora só o vissem nas aulas e na capela onde, di­ariamente, celebrava a Santa Missa... De resto, passava o dia-a-dia no seu quarto a estudar, a ler, a escrever.
Era uma pessoa doente e o seu mal estava nos pul­mões; por esta razão pas­sou meses nos Sanatórios da Guarda e do Caramulo e ainda em Casas de Saúde de Braga e do Porto.
A doença complexava­-o, de tal modo que se dizia incapaz de leccionar e foi necessário, muitas vezes, que o Reitor do Seminário e os colegas o "forças­sem"...
Sendo competentíssi­mo, escrevia todas as lições... falava muito depres­sa e verificava-se o seu cansaço aros cada -aula. Dizia ele que ficava completamente arrasado.
Muitas vezes quis de­sistir do magistério, dizen­do que se sentia incapaz de comunicar fosse com quem fosse, afirmando que as suas lições faziam dormir os alunos: o que não era verdade. Tinha receio de falar em público e, quantas vezes, por esta razão, o Arcebispo D. António Ben­to Martins Júnior o quis encarregar de missões es­peciais, mas nada conse­guiu.
Pela sua capacidade te­ológica, cultura humanís­tica e o gosto pelas letras, foi nomeado Director da re­vista "Acção Católica" - cargo que abandonou de­corridos seis meses, ape­lando para o seu estado de saúde.
Sempre desempenhou o cargo de examinador do Clero e de Juiz do Tribunal Eclesiástico, sendo exí­mio nas sentenças profe­ridas e na redacção das mesmas, quando em latim.
Não posso esquecer o trabalho que o Doutor Alexandrino realizou como Juiz na condução do Processo de beatifica­ção de Alexandrina Ma­ria da Costa - terça-fei­ra, dia 30 de Março, co­memorou-se o centená­rio do nascimento da Ve­nerável de Balasar, Pó­voa de Varzim.
O seu nome está pro­fundamente unido ao da Serva de Deus... Jamais se esquivou a qualquer trabalho, mesmo árduo, dizendo sempre que a Alexandrina tudo lhe merecia,
Quanto mais se poderia escrever sobre este mestre!
Na tarde de 2 de Ja­neiro de 1974, faleceu no Hospital do Carmo, no Porto, e foi sepultado em Bagunte, terra de sua naturalidade.
Recordo que presi­diu ao funeral e nos deu a "imagem perfeita do Doutor Alexandrino" o Senhor Arcebispo D, Francisco Maria da Silva - seu condiscípulo, em Roma, desde a primeira hora... Citou um pensa­mento do célebre Bour­deloue, cuja ideia central retive: muitos se têm perdido pelo fulgor dos seus talentos, dos seus triunfos... jamais se per­deu alguém pelos sen­timentos de uma ver­dadeira e sólida humil­dade.
O Doutor Alexandri­no está na glória!

Cónego Eduardo de Melo Peixoto, Diário do Minho, 4/4/2004

A “Estalagem das Pulgas” ou o cap. XXVII de “A Filha do Arcediago” de Camilo Castelo Branco

Sigamos Augusto Leite, enquanto sua mulher e filha dão a Maria Elisa a felicidade, que ela lhes remunera com afagos.
O jogador, febril de contentamento, entrou em sua casa, no Laranjal, disse algumas palavras a sua mãe e mandou preparar a inseparável moçoila que o acompanhava na boa e má fortuna havia quatro anos.
Saiu e comprou uma jaqueta de peles, uma faixa de seda escarlate, chapéu de guizos, um par de pistolas, um cobrejão e dois cavalos de baixo preço.
Duas horas depois, a rapariga, encadernada numas andilhas, passava na Ramada-Alta, estrada de Vianna, e Augusto Leite, com pau de choupa debaixo da perna, esporeando o cavalo, à laia de cigano, caminhava a par com ela.
Nesse dia foram dormir a Casal de Pedro, e viram lá umas pulgas, cujas netas eu encontrei trinta anos depois, pulgas enormes e ferozes, que arrastam as meias dos passageiros, depois que lhes exaurem as artérias dum sangue azedado pelo maldito vinho que a estalajadeira vos ministra, perguntando-vos se sabeis alguma mezinha para matar as bichas dos pequenos.
Pernoitei aí uma vez na minha vida. Compreendi, no quarto que me deram, os suplícios do cristão primitivo atirado ao circo. «Cristão às pulgas!» deveria ser, no império romano, um grito de prazer para o paganismo sanguinário, como o fatal «Cristão às feras!»
Era alta noite e eu não podia transigir, dormindo, amigavelmente com a ferocidade dos insectos, se é que não podemos chamar cetáceos àquelas pulgas, de horrível recordação. No sobrado imediato ao da pocilga em que eu me contorcia nas vascas duma agonia de novo género, rosnavam uma boa dúzia de galegas que vinham da terra a visitarem os respectivos galegos residentes no Porto.
Descompunham-se em raivosas apóstrofes por causa das mantas, que algumas delas monopolizavam com grave escândalo e frialdade das outras. Dos impropérios passaram a vias de facto. Socaram-se, esgadanharam-se, revolveram-se, creio eu, como uma matilha de cadelas e vieram de encontrão à porta do meu quarto, que não resistiu ao choque e deixou entrar aquele embrulho indecifrável de górgonas em fralda de camisa, que me pareciam, à luz mortiça da vela, executarem uma dança macabra, uma mazurca de demónios!
Eu levantei-me em pé sobre o catre de pau castanho, pintado de amarelo, e presenciei com os cabelos erriçados o desfecho daquela tremenda luta. O dono da estalagem e o meu criado vieram protocolizar a desordem, distribuindo alguns murros indistintamente, de que resultou a fuga desordenada das galegas para o seu arraial, ficando considerado o meu quarto campo neutro.
Nesse mesmo quarto, às duas horas da noite, também o senhor Augusto Leite recebeu uma inesperada visita; mas não de galegas em guerra crua. Eram oito soldados de cavalaria, comandados por aquele estúrdio cadete que o leitor conhece e reforçados por alguns meirinhos do corregedor, e um especial enviado do regedor das justiças.
Já soubemos que Augusto Leite roubara em Lisboa uns brilhantes. A razão por que os roubara deu-a Prudon depois: os brilhantes eram propriedade da condessa de …, e a propriedade era um roubo.
Como se introduziu Augusto Leite em casa da condessa de …? Não é bem líquido, e eu não quero inventar, porque não tenho necessidade de deslustrar a veracidade do meu conto por amor dum incidente de pouca monta. Disseram uns que Augusto Leite era amante da condessa; outros afirmam que o académico, expulso da universidade, se valera dum seu condiscípulo, primo dessa senhora, para ser protegido por ela na sua admissão à academia. Eu, de mim, para não duvidar de nenhuma das explicações, acredito-as ambas, e não ofendo os diversos opinantes.
O que devem todos acreditar é que Augusto Leite dispensou à condessa o trabalho de pôr o seu colar e pulseiras de brilhantes em um dia de anos duma sua prima. As suspeitas recaíram em todos os domésticos, menos em Augusto Leite. No dia seguinte corria em Lisboa que um académico, visita frequente da condessa de …, tinha perdido, em menos de três horas, trinta mil cruzados em casa do barão de Quintela. Os curiosos averiguaram o manancial possível deste dinheiro e souberam que um judeu na rua dos Fanqueiros comprara na véspera por trinta mil cruzados uns brilhantes. A condessa, com autoridade judicial, fez que o judeu apresentasse os brilhantes comprados. Reconhecidos, apossou-se deles sem mais formalidade. O judeu gritou contra a extorsão, perguntando se reviviam os tempos nefastos de D. João III; ofereceu-se voluntariamente para a fogueira; e a tudo isto, que realmente era patético, o procurador da condessa respondeu: res ubicumque est sui domini est.
O judeu não ficou sabendo latim, mas conheceu vários artigos da nossa legislação e aproveitou-se daquele que o autorizava a perseguir o ladrão.
Augusto Leite entrou em casa da condessa, quando ela voltava de reconhecer os seus diamantes. Um criado presenciou que ela algumas palavras lhe dissera, e o seu protegido respondeu a elas, voltando as costas para nunca mais tornar. Os maledicentes quiseram inferir da generosidade da condessa, que o avisou, consequências desfavoráveis para a honra dela. Como quer que fosse, Augusto fugiu de Lisboa, a pé, sem dinheiro, sem bagagem, com uma mulher ao lado, e assim vagou quatro meses, não sabemos por onde, até que o vimos entrar em casa da viúva de António José da Silva.
Tornemos agora a Casal de Pedro.
O enviado do regedor das justiças bateu à porta da estalagem, e perguntou que passageiros pernoitavam ali.
—Dois almocreves, o recoveiro de Vianna, um passageiro do Porto com sua mulher e um criado.
—Abra lá a porta—disse com a costumada intimativa o executor da lei.
Abertas as portas, os meirinhos encaminharam-se para o quarto do passageiro. Augusto Leite ouvira as perguntas. Saltara fora da cama para fugir, mas não conhecia um palmo da casa fora do seu quarto. Antónia Brites, companheira dos seus trabalhos, lembrou-se dalguns santos que conhecera na infância, e incomodou-os com as suas orações. O antigo tradutor de novelas não lera cousa que lhe servisse de modelo para semelhante conflito. Quis precipitar-se da janela, mas viu na rua os cavalos em linha. Recuou diante dum sacrifício inútil e apelou para os extremos.
Os meirinhos entraram e viram uma mulher de joelhos com as mãos erguidas e um homem de semblante feroz com duas pistolas aperradas.
O estalajadeiro, que caminhava na frente com a candeia, fez dois passos à retaguarda e declarou-se neutral. Os meirinhos, que tinham à vida o amor suficiente para viverem oitenta anos mais, não foram mais adiante que o prudente estalajadeiro. Augusto conservou-se na postura ameaçadora, fuzilando dos olhos um clarão mais vivido que a candeia trémula do petrificado taverneiro.
Um dos meirinhos, enquanto os outros voltavam as costas, veio à rua e disse que o homem não era para graças. O cadete apeou e subiu com dois soldados. Foi à porta do quarto e encontrou o atleta na sua imobilidade sinistra. Deu-lhe voz de preso e viu que o ladrão era surdo ou rebelde à lei.
— O melhor é botar-lhe as unhas—murmurou um soldado.
— Agarra-o, trinta e quatro!—disse o cadete.
O trinta e quatro entrou no quarto e, quando lançava mão aos copos da espada, sentiu um corpo duro bater-lhe na testa. Descarregou ainda um golpe e foi de bruços atrás da espada que bateu no sobrado. Estava morto.
O camarada do trinta e quatro correu em defesa do seu companheiro. Descarregou duas cutiladas na cabeça de Augusto; mas, à terceira, sentiu fraquear-lhe o braço, e veio recuando, cair, com uma bala no coração, aos pés do cadete.
Os outros soldados tinham subido e atropelavam-se à entrada do quarto. Augusto Leite, coberto de sangue, defendia-se debilmente com a choupa, que vencia o alcance das espadas. Os soldados, arrefecidos pelo aspecto dos dois camaradas mortos, não ousavam afrontar o aço da choupa, que algumas vezes sentiram resvalar-lhe na farda, deixando-lhe na pele um ligeiro ardor, que depois se exacerbava com a humidade do sangue.
O cadete, envergonhado da cobardia dos seus diante dum só homem, entendeu que salvava a sua honra, desfechando uma clavina no peito de Augusto Leite. Ao desfechá-la viu interpor-se-lhe um vulto. Era Antónia Brites, que vinha pedir-lhe de joelhos que não matasse Augusto. Não chegou a pronunciar a primeira palavra. Recebeu a bala, que havia de matar o marido de Rosa, e caiu pedindo confissão. Deus lhe levaria em desconto das suas culpas o bom desejo de reconciliar-se com o céu, porque fechou os olhos antes de ver o padre.
Augusto, impelido pelo instinto da vida, saltou da janela ao quinteiro com tal destreza que as espadas não puderam tocar-lhe. O quinteiro estava deserto de homens, e os cavalos soltos entretinham a fome no tojo. A comitiva correu atropeladamente a impedir a fuga. Quando chegaram ao quinteiro, meirinhos e soldados, qual deles mais corajoso, o que viram foi um cavalo de menos e na calçada fronteira as faíscas das ferraduras do que fugia. Alguns soldados quiseram montar, mas os cavalos, assustados pelo salto de Augusto ao meio deles, não deixavam estribar e jogavam de garupa com mau resultado para o meirinho geral, que perdeu aí os três únicos dentes que possuía.
— Já se não pilha!...—disse o cadete.
—Agora é vê-lo ir—acrescentou um soldado.
—Vamos ao quarto tomar-lhe conta das malas—disse o enviado do regedor das justiças.
Entraram no quarto. Abriram uma pequena mala de couro e umas bolsas de holandilha onde encontraram alguma roupa branca. Dinheiro, nem cinco réis. A volumosa carteira com três contos menos duzentos mil réis, que o sobrinho do senhor António José da Silva gastara em cavalos e pistolas, e fato, levava-a ele no bolso da jaqueta de peles.
De madrugada os executores da lei voltavam para o Porto, com os dois cavalos de Augusto Leite.
Os três cadáveres foram enterrados no adro da igreja paroquial, porque o vigário duvidou sepultá-los em sagrado, visto que não traziam sinal de cristãos, como cruz, nominas, bentinhos, verónicas ou outro qualquer distintivo da fé católica.

Os arrolamentos republicanos dos bens paroquiais do concelho de Vila do Conde


Recentemente tomámos conhecimento dos arrolamentos republicanos dos bens paroquiais de Vila do Conde que se guardam no Arquivo Municipal. Foram feitos em finais de 1911 e princípios de 1912 sob supervisão do administrador, que ao menos em parte deles era o brasileiro Francisco Baltazar do Couto. Sabemos bem que a intenção desses arrolamentos era a pior, mas hoje eles tornam-se documentos históricos úteis: estão bem estruturados, têm boa apresentação e dão-nos uma ideia bastante precisa dos bens que cada paróquia possuía, que nas mais das vezes eram muito humildes.
Para se fazer uma ideia da pressão republicana então exercida contra a Igreja, veja-se a notícia que copiámos daqui:

Outeiro, Vila do Conde, 2/8/1911

Realizou-se no domingo passado a festividade do Coração de Jesus, precedida de práticas preparatórias feitas pelo novel orador sagrado Adelino Anselmo de Matos, pároco de Curvos, Esposende, que muito agradou e tirou abundante fruto, não obstante ter sido chamado à última hora.
De manhã houve comunhão geral, distribuindo-se o Pão dos Anjos a umas trezentas pessoas.
De tarde realizou-se uma procissão em honra do SS. Sacramento, promovida por um grupo de devotos e que este ano quiseram cooperar com a Associação do Coração de Jesus, revestindo a festa mais solenidade em virtude de se ter levantado um novo e lindo cruzeiro oferecido à freguesia por um grupo de briosos rapazes que daqui foram para o Brasil e que, entregues ao labutar constante da vida, não se esqueceram da sua terra natal nem da sua fé.
À frente da procissão ia uma bandeira que, pela sua frente, em puro veludo de sedas, ostenta os emblemas do Coração de Jesus, circundados por um ramo a ouro, entrelaçado por uma fita a matiz, rematando tudo em uma espécie de dossel, que produz um efeito surpreendente. Do lado oposto, encontra-se, também bordado a ouro, o emblema JHS, tendo ao fundo um ramo a matiz de belo gosto, e ao cimo a palavra “particular”, em semicírculo.
Como que a pôr um embargo à alegria que todos sentiam no meio de tão linda e religiosa festividade, por ser a única que agrada e consola o coração do verdadeiro cristão e está no ânimo de todos os habitantes desta freguesia, apareceu um ofício do cidadão Administrador do Concelho de Vila do Conde, com a nota de “urgente”, que ao conhecer-se produziu o efeito de um frigidíssimo duche. Dizia assim:

Tendo conhecimento de que nessa freguesia se costuma anualmente fazer umas práticas e confissões, sob a denominação de Coração de Jesus, tenho a dizer-lhe que tais práticas são proibidas e punidas por lei. Queira pois não consentir e participar-me, caso não sejam acatadas as minhas ordens.
Saúde fraternidade.
Ao cidadão regedor da freguesia de Outeiro.
Vila do Conde, 27 de Julho de 1911.
O Administrador do Concelho – Luís da Silva Neves.

Está claro que se a autoridade da freguesia – o Sr. António Gonçalves de Azevedo – não fosse um cavalheiro prudente, um católico prático a quem agradam sobremaneira os actos da nossa santa religião, na qual se esmera por educar toda a sua família, este ofício viria privar este bom povo da sua querida festa, contristando-o e talvez exaltando-o. Felizmente tudo se fez sem o mais pequeno incidente e no meio da mais franca alegria. – P. A.

(Informação saída no jornal O Poveiro, da Póvoa de Varzim, em 10/8/1911)

Algumas informações de 1846

Em 4 de Maio de 1846, o administrador do concelho de Vila do Conde informou o Governo Civil sobre vários temas. De S. Clara diz que tinha 35 religiosas e da Matriz que datava de 1500 (o que estava mais ou menos certo, e que "em 1518 já aparece nela erecta uma colegiada pelo Arcebispo de Braga D. Diogo de Sousa". Curiosamente diz que a Matriz se assemelha "muito na sua fábrica da Igreja de Belém em Lisboa. É toda de cantaria com a meias".