segunda-feira, 12 de outubro de 2009

D. Manuel Baptista da Cunha

O Arcebispo que viveu cinco meses de exílio em Vila do Conde

Nos Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga, conta o Mons. José Augusto Ferreira o período que o arcebispo bracarense D. Manuel Baptista da Cunha passou em Vila do Conde, em exílio – exílio que terminou com a sua morte.
Estávamos em finais de 1911 e pesavam sobre a Igreja as prepotências republicanas, como o próprio historiador nos vai explicar. Como reflexo da mesma situação política, é diminuta a importância que a imprensa vila-condense deu aos acontecimentos, atendendo a que a Matriz da Vila foi, para alguns efeitos, a ocasional «catedral» da Diocese. Como amostra, vejam-se alguns dos parágrafos do Democrático, que noticiam a morte do Arcebispo e que saíram quase ao fundo da segunda página, sem destaque nenhum:

«No belo palacete do Sr. Comendador Bento de Aguiar, à Rua Bento de Freitas, faleceu às 10 horas do dia 13 do corrente, vitimado por uma congestão cerebral, o arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, D. Manuel Baptista da Cunha.
Era natural da freguesia de Espinhel, concelho de Águeda, e contava 70 anos de idade.
O seu cadáver, encerrado em caixão de chumbo, foi depositado na Igreja Matriz ao fim da tarde de quarta-feira, celebrando-se ofícios e matinas na quinta, com assistência de muitos eclesiásticos das dioceses do Porto e de Braga e da maioria dos prelados do país.
Sexta-feira, depois de solenes exéquias, efectuou-se o enterramento e a inumação em jazigo que a família Beiral possui no Cemitério da Ordem Terceira de S. Francisco.
No próximo número daremos uma notícia mais circunstanciada dos funerais.»

Efectivamente, na semana seguinte, o mesmo jornal volta ao tema, para informar, entre outras coisas, que «a oração fúnebre foi proferida pelo bispo do Porto, D. António Barroso, que fez um discurso correctíssimo», que as absolvições «foram lançadas pelos Bispos de Viseu, Lamego e Portalegre e pelo arcebispo do Algarve», sob a presidência do «Arcebispo-bispo da Guarda», e que «dirigiu os funerais o cónego Prior desta Vila, Mons. José Augusto Ferreira».
Passemos agora a palavra este Prior da Vila, nos seus Fastos Episcopais da Igreja Primacial de Braga:

Desterro do Arcebispo e seu estágio em Vila do Conde

«O Governo e os seus agentes teimaram na formação e instalação das Cultuais, nos termos da Lei da Separação, organismos condenados pela Igreja, por serem opostos à Constituição da mesma Igreja e à sua hierarquia; por isso os Bispos vieram unanimemente à estacada e proibiram tais Associações[1] encarregadas do culto.
Os Bispos portugueses foram todos castigados com processos dispendiosos para eles e com a expulsão vio­lenta da sede das Dioceses e seu distrito; todavia as Cultuais não se formaram e, não obstante, o culto católico manteve-se em todas as igrejas do país.
O Arcebispo D. Manuel Baptista da Cunha expediu com data de 5 de Janeiro de 1912 uma Circular que fez distribuir pelos Vigários Gerais e Arciprestes a todos os Párocos deste Arcebispado, proibindo a formação das Cultuais, no sentido do citado Decreto de 20 de Abril do mesmo ano.
O Governo respondeu à citada Circular com o De­creto de 12 de Fevereiro seguinte, condenando-o à pena de desterro para fora do Distrito de Braga por dois anos, além da perda dos benefícios materiais do Estado a que por ventura tivesse direito. Foi-lhe conce­dido o prazo de cinco dias a contar da publicação deste Decreto no Diário do Governo, para sair da cidade, que se chamou dos Arcebispos, e seu distrito (vide Diário do Governo, n.º 36, de 13 de Fevereiro de 1912).
No dia 17 de Fevereiro o Arcebispo retirou para a sua casa de Paralela (Águeda), em obediência ao De­creto do Governo, que lhe impôs a saída do Distrito de Braga durante dois anos, por haver cumprido o seu dever, comunicando, como disse, ao Clero e fiéis da Arquidiocese a doutrina da Igreja Católica sobre as Associações Cultuais!
Na Gare teve o Arcebispo uma despedida afectuosa por parte do Clero e amigos pessoais, havendo na véspera recebido na sua modesta casa do Campo Novo uma eloquente mensagem de saudação assinada pelo Cabido e por todo o Clero da cidade e concelho.
Pouco depois escreveu-me uma carta dizendo ser sua vontade benzer os Óleos na Igreja matriz de Vila do Conde em Quinta-feira maior, e hospedar-se na minha casa com o Sacerdote que devia acompanhá-lo.
Prontamente respondi, pondo a minha pobre casa com todo o gosto à disposição do bondoso Prelado.
O Arcebispo, porém, reconsiderou; fez a bênção dos Óleos na Igreja da sua terra e, quando entendeu, tratou da sua instalação definitiva em Vila do Conde, servindo eu de intermediário para tudo. Isto, porém, tem uma história, que vou contar em meia dúzia de linhas, pela necessidade de abreviar o assunto, a fim de não tornar demasiadamente longas estas «Memórias».
Aí pelo mês de Dezembro de 1911, morava já o Arcebispo no Campo Novo, vim a esta cidade e fui vi­sitá-lo.
Eu, que sou de Braga e toda a minha vida vi o Ar­cebispo rodeado de grandeza num Palácio, fiquei mal impressionado com a nova morada do meu Prelado; porém, depois que conversei com ele durante alguns minutos e ouvi os seus desabafos, comovi-me e disse-lhe que me parecia não estar ele bem ali e, por isso, ofereci-lhe sinceramente a minha casa em Vila do Con­de, oferta que ele aceitou logo em princípio.
Com este meu gesto tive um duplo intuito: prestar um serviço à Igreja numa conjuntura difícil da sua história e concorrer de algum modo para o engrandeci­mento de Vila do Conde, terra de tradições aristocráticas.
O Arcebispo mandou a Vila do Conde pessoa da sua confiança para arrendar uma casa; mas as coisas dispuseram-se de modo que coincidiram com a compra do palacete da Avenida por um benemérito e bizarro vilacondense, residente em Pernambuco (comendador Bento Luís de Aguiar, irmão do Rev. Dr. Elias Luís de Aguiar, e já falecido), que genero­samente o cedeu ao Arcebispo durante a sua permanência naquela vila.
Conseguida a casa, foi preciso preparar o ambiente, a fim de garantir a tranquilidade do Arcebispo.
Na altura devida, sem ruidosos espectáculos, por não os permitirem os tempos, entrou D. Manuel Ba­ptista da Cunha em Vila do Conde no dia 19 de Dezem­bro, proximidades do Natal de 1912, indo logo no dia 21 à Igreja Matriz conferir uma Ordenação geral, acto, que, por constituir uma novidade na terra, foi numerosamente concorrido de fiéis.
O Arcebispo durante os cinco meses da sua permanência na vila foi sempre respeitado e estimado por todos; conferiu uma outra Ordenação, administrou o Crisma por diferentes vezes a milhares de fiéis, ben­zeu os Óleos em Quinta-feira Maior, e celebrou com muito esplendor Missa pontifical no Domingo de Páscoa.
E, quando eu preparava e dispunha as coisas para duas grandes solenidades — Primeira Comunhão das crianças e Tríduo e Festa do Sagrado Coração de Jesus, que deviam ser presididas pelo bondoso Arcebispo (estas duas festas, já de costume na terra, fizeram-se de­pois com a presidência do saudoso Bispo do Porto D. António Barroso), a fatalidade do destino adverso veio mudar o cenário dos acontecimentos!

Morte do Arcebispo em Vila do Conde

O Arce­bispo havia resolvido aceitar o convite, que lhe fora feito para ir presidir às pomposas festas do Espírito Santo em Paredes de Coura, onde ministraria o Crisma.
Na antevéspera da partida mandou-me chamar. Falou-me no compromisso tomado e na repugnância em satisfazê-lo por motivo de saúde. O seu espírito estava conturbado.
Aconselhei-o a que, por motivo justificado, adiasse a visita e nesse sentido telegrafasse para os amigos de Paredes de Coura. Adiar também é resolver, disse eu ao Arcebispo, e retirei-me; porém longe de mim o pensamento da des­graça que estava iminente.
No outro dia ou no imediato, de manhã cedo, cai-me em casa a infausta notícia da doença súbita, de que fora acometido o Arcebispo.
Corri imediatamente a casa dele e soube que, preparando-se para a jornada de Paredes de Coura, fora acometido duma congestão cerebral, que num artério-escleroso poucas probabilidades de melhoras oferecia.
Dado o alarme, compareceram logo médicos e farmacêuticos, e todos com grande dedicação procuraram salvar o doente.
Considerado o caso perdido, administrei-lhe o Sa­cramento da Extrema-Unção e li-lhe o Ofício da agonia.
No dia 13 de Maio, com setenta anos de idade, o Prelado exalava o último suspiro e sucumbia talvez ao peso ingente dos desgostos e amarguras, que tinha curtido nos últimos anos do seu pontificado.
A morte redentora veio pôr termo a tanto sofrimento e aliviá-lo dum encargo, com que certamente já não podia.
Toda a vila ficou consternada com o triste e dolo­roso acontecimento.
Resolvido que ficasse provisoriamente em Vila do Conde o cadáver do Arcebispo, prepararam-se os funerais, que tiveram uma extraordinária imponência.
Na tarde do dia 15 de Maio o cadáver do Arcebispo foi transportado, com grande concurso de Clero e fiéis, para a Igreja matriz, onde se cantaram Vésperas e Mati­nas, e no dia imediato Laudes e Missa, sendo no fim dadas as Absolvições ao túmulo pelos Bispos do Al­garve, Viseu, Lamego e Portalegre, e a última pelo Arce­bispo-Bispo da Guarda.
O Bispo do Porto D. António Barroso proferiu uma sentida Oração fúnebre.
Além dos Prelados presentes, outros se fizeram representar, e, entre estes, o egrégio Arcebispo D. Augusto Eduardo Nunes pela minha obscura pessoa. Seguiu-se finalmente o acompanhamento ao Cemitério, presidido pelo Deão da Sé Primaz Correia Simões, incorporando-se no cortejo fúnebre os Bispos já referidos, os Cónegos da Catedral de Braga, numerosíssimo Clero do Arcebispado e do Bispado do Porto, as Irmandades e Confrarias da Vila, grande concurso de fiéis, etc.
Os restos mortais do saudoso Prelado ficaram provisoriamente depositados ali no jazigo que pertencera à distinta família Beiral Rocha, e já então era e ainda hoje é propriedade minha, sendo depois transferidos para o humilde Cemitério da terra da sua naturalidade, onde repousam com este singelo epitáfio:

AQUI JAZ
O ARCEBISPO DE BRAGA
D. MANUEL BAPTISTA DA CUNHA.
NASCEU EM PARADELLA A 16 DE ABRIL DE 1843.
FALLECEU EM VILA DO CONDE A 13 DE MAIO DE 1913.

Esta inscrição, na sua eloquente simplicidade, mostra-nos que D. Manuel Baptista da Cunha morreu no exílio e, portanto, ficou sendo perante a história uma das vítimas ilustres da perseguição religiosa.»

[1] Estas Associações Cultuais teriam a seu cargo todos os bens das igrejas, e os párocos nem a elas poderiam pertencer...

Imagens: em cima, D. Manuel Baptista da Cunha; mais a baixo, o palacete onde o mesmo Arcebispo redidiu e faleceu em Vila do Conde.

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